Resenha: Terra sem mapa (Ángel Rama)

2019 está sendo um ano de muitas mudanças nos meus hábitos de leitura. Ainda estamos em março e já me aventurei a ler coisas bem diferentes do que eu costumava, como thrillers, não-ficção, e agora algo que quero muito fazer mais: ler autores da América do Sul. Infelizmente o mercado editorial brasileiro ainda é muito preso a publicar apenas best-sellers, em sua maioria norte-americanos e europeus. Mas através do clube Pacote de Textos descobri a Grua, uma editora comprometida em publicar obras diferenciadas, sendo o que eles chamam de uma ponte entre a tradição e o novo. Recebi do clube a obra Terra Sem Mapa, do autor Ángel Rama, e vim dividir a minha opinião com vocês por aqui.

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SINOPSE: Esta edição de Terra sem Mapa é a primeira tradução brasileira de sua obra ficcional. Neste livro de 1959, em que reconta as histórias de sua mãe, quando menina, um tecido vai se formando com os entrelaces de outras histórias, de outras meninas, na mesma Galícia do início do século. Fio a fio, vislumbra-se a estampa, ainda que não se entenda bem o mecanismo do tear. Sua leitura é um caminho para a delicadeza. Na profícua produção do autor, Terra sem Mapa tem um lugar especial. Aquele um que não se sabe bem onde fica, entre a memória e a invenção, entre o sentimento e a razão. Sem mapa, mesmo. Prêmio Ramón Del Valle-Inclán, pelo Centro Galego de Buenos Aires, em 1959, e Prêmio Vieira de Plata em 1970.


Os contos escritos pelo autor nessa obra se entrelaçam, apesar de ao mesmo tempo serem independentes. Os mesmos personagens aparecem em várias das histórias, sendo todos moradores de uma pequena cidade em algum lugar da Galícia, região da Espanha. Uma cidade que, como diz o autor, não poderia ser nem encontrada no mapa. Sua inspiração para as histórias se baseia naquelas contadas pela sua mãe, que nasceu na região e posteriormente migrou para Montevidéu. Na maior parte delas nos deparamos com uma encantadora família composta por uma mãe viúva e muitas filhas. 
O livro retrata de forma muito vívida o cotidiano da região, composto pelo trabalho doméstico, a religião e as relações sociais. Me encantei pela habilidade de descrição do autor, que foi capaz de me fazer visualizar cada cena e relembrar muitas outras histórias que ouvi de meus pais e avós. Ele constrói diversos símbolos dessa vida cotidiana, como quando no conto "Os grãos", relaciona o debulhar de vagens com a reza do rosário, descrevendo o movimento das mãos. Ele também fala muito sobre a infância - sobre os choros reflexivos e angústias que podemos sentir nessa fase em que nem mesmo entendemos ainda a complexidade do mundo - e o olhar que temos sobre a vida adulta.

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Para deixá-los ainda mais curiosos a respeito desta dobra do autor uruguaio, separei alguns trechos que foram marcantes para mim:

"Acontece que, apesar de sua recobrada alegria, algo inexplicável caiu até o fundo de sua alma para ficar ali, adormecido, mais vivente. Apenas um talvez que ela não se atreve a formular. Temor de que, talvez, algum dia a chuva não pare; de que, talvez, o mundo se acabe." 
A chuva (p. 42)

"Para Lina, nem muda o mundo, nem muda a cara de sua mãe; por mais que retroceda no tempo, encontra sempre idêntica imagem." 
O riso (p. 98)

"Ser pobre é não ter. Tão ardentemente queria ter, que agora sobre todas as coisas que vê põe seu nome e o possessivo: 'os pintinhos são meus, e a galinha baratá é minha; o bezerrinho é meu, os dois carvalhos são meus, o burro do José também é meu.' Em sua enumeração, chega a esgotar o mundo conhecido e fica perplexa, esforçando-se para descobrir mais tesouros de sua exclusiva propriedade" Nós somos pobres (p. 132)

Só de escrever esses trechos já fiquei com saudade do livro. 

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É uma obra leve e carregada de muita beleza e sentimento. Ultimamente esse tem sido o tipo de leitura que mais me encanta e distrai, então foi maravilhoso. A edição da Grua está perfeita, com folhas amareladas na medida certa e boas margens. Todo esse conjunto me fez dar 5 estrelas ao livro.
Recomendo muito o autor, que carrega também uma interessante história e carreira na área da crítica literária.  Terra sem mapa é com certeza um livro singular, suave e gostoso de ler.

ISBN: 978-85-61578-01-5
Editora: Grua 
Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐

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