Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça (Reni Eddo-Lodge)

Tem sido difícil ser produtiva e trabalhar no blog em meio a essa pandemia, e mesmo estando em quarentena voluntária em casa e tendo muito tempo livre, não estou no meu melhor estado psicológico para me manter numa rotina. Porém acho que hoje tive um sopro de melhora, o que me fez vir aqui tentar trazer nesta resenha as minhas impressões sobre esta grande obra da britânica Reni Eddo-Lodge.

por que eu nao converso mais com pessoas brancas sobre raça

Ouvi falar desta obra há muito tempo, na época que a Emma Watson fez elogios à autora, antes mesmo de o livro ser publicado no Brasil. Quando então a Letramento anunciou que iria publicar a obra, eu fiquei super feliz! Primeiro por finalmente poder pôr as mãos neste livro, e segundo por estar sendo publicado por uma editora que tanto admiro. Recentemente eles me enviaram uma cópia e finalmente pude descobrir os motivos que fizeram este livro ser tão comentado.
Com tradução da Elisa Elwine, a edição brasileira começa com uma apresentação da Gabi Oliveira, do canal DePretas. Ela traz logo de início o mito da democracia racial e nos mostra como um livro escrito num contexto europeu também traduz muito do que vivenciamos no Brasil como pessoas negras. Logo em seguida, no prefácio da autora, temos contato também com o texto original que deu a origem ao livro, publicado em seu blog no ano de 2014. Foi lá que ela expressou as suas angústias e decretou que não conversava mais com pessoas brancas sobre raça.

Então eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Eu não tenho o imenso poder de mudar a forma como o mundo funciona, mas posso estabelecer limites. Posso suspender o direito que elas sentem em relação a mim e vou começar parando a conversa. A balança tende demais a favor delas. Suas inteções muitas vezes não são de ouvir e aprender, mas exercer seu poder, provar que estou errada, me drenar emocionalmente e reequilibrar o status quo." p. 13
Essa afirmação pode fazer você pensar que a autora é muito pessimista, mas a medida que ela expõe os seus motivos e nos explica sobre a decisão de autopreservação fica bem mais fácil de se identificar com as suas afirmações. E sendo uma cidadã negra de um país intolerante como o Brasil, tudo fez ainda mais sentido pra mim. 

Ser branco é ser humano, ser branco é universal. Eu só sei disso porque não sou." p. 17

Fundamentando a discussão que trouxe no prefácio, a autora aborda no primeiro capítulo alguns fatos históricos que levaram a Inglaterra a chegar onde está. Ela faz uma verdadeira linha do tempo do racismo, que demonstra verdades difíceis de engolir. O que percebo de forma geral é que os brancos são culpados por terem nos colocado na posição de marginalidade, mas até hoje nos culpam por estarmos onde estamos. Isso está presente nos discursos contra as cotas e até mesmo nas afirmações carregadas de ódio que dizem que negros usam sua cor como vantagem contra os brancos.
Mais na frente vemos ainda como o Estado sempre buscou se isentar da culpa - assim como acontece aqui no Brasil -, principalmente no contexto de criminalidade. O apanhado histórico feito pela autora prova como o crime não é algo intrínseco a nós negros, mas é visto assim pela maioria da população branca.  
Em seu segundo capítulo, a autora fala sobre o sistema e explica muito bem o racismo institucional, mostrando como o problema é bem mais profundo. A autora debate ainda sobre o racismo estrutural, defendendo o termo como "a única maneira de capturar o que passa despercebido" (p. 66), o que me trouxe diversas reflexões também sobre a sociedade brasileira, onde o chamado "racismo velado" está tão presente.

por que eu nao converso mais com pessoas brancas sobre raça

Seguindo a discussão sobre raça, a autora se debruça no terceiro capítulo sobre o privilégio branco, definindo-o como "a ausência das consequências negativas do racismo" (p. 81). Achei interessantíssimo como a autora foi capaz de demonstrar que todos são cúmplices do privilégio branco, mas ninguém quer assumir a responsabilidade. Ela também discute neste capítulo o tal do "racismo reverso", mostrando de forma bem didática porque não faz sentido usar o termo:
Todo mundo tem a capacidade de ser desagradável com outras pessoas, de julgá-las antes de conhecê-las. Entretanto, simplesmente não há pessoas negras o suficiente em posições de poder para promulgar o racismo contra pessoas brancas no tipo de grande escala que atualmente opera contra pessoas negras." p. 84
No que diz respeito a nossa posição como negros no debate sobre raça, a autora também foi capaz de traduzir muitos dos sentimentos que já enfrentei nesse terreno, como quando afirma que "você nunca tem certeza de quando uma conversa sobre raça e racismo se tornará uma onde você tenha medo de sua segurança física ou posição social" (p.86). Ela chega a falar sobre os brancos que simpatizam com a causa negra ou se portam como progressistas, porém mostrando como o discurso de paz que alguns tentam apresentar, buscando uma ausência de tensão, nem sempre é benefíco. Neste ponto ela cita o Martin Luther King em sua afirmação de como "a aceitação indiferente é muito mais desconcertante do que a rejeição total."

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Em seus capítulos seguintes, Reni resume ainda algumas outras questões pertinentes na discussão sobre raça. Em "medo de um planeta negro", ela entrevista o político liberal Nick Griffin, que tem posturas conservadoras e sobretudo racistas, tendo afirmado várias vezes temer que os brancos se tornem uma minoria étnica na Grã-Bretanha. Lendo outras resenhas sobre a obra no Goodreads, observei algumas críticas a inserção desta entrevista na obra, talvez por parecer ser apenas uma forma de trazer publicidade ao livro. Eu concordo com isto em partes e sinto que a entrevista ficou meio perdida ali, mas não acho que, de forma alguma, ela invalida todo o trabalho feito pela Reni ao longo deste texto.
Um ponto que me chamou a atenção neste capítulo foi o fato de em muitos desses discursos extremistas como o de Nick Griffin estar presente a ideia de que "antigamente as coisas eram melhores". Quando a autora fala que "eles gastam seu tempo ansiando por uma nostálgica Grã-Bretanha que nunca existiu", eu lembrei muito do que os brasileiros defensores da ditadura militar afirmam. Parece que a memória curta e deturbada não é exclusiva do brasileiro.
Outros temas ainda entram em discussão, dentre eles reparação histórica, liberdade de expressão e a presença de negros no meio artístico, mas não acho que devo me alongar nestes pontos. Os maiores trunfos da autora no final deste livro se encontram, ao meu ver, na discussão sobre feminismo.
No ponto em que o feminismo se tornou um movimento placidamente branco que afirma trabalhar em nome de todas as mulheres, mas não questiona sua própria branquitude esmagadora, nós realmente precisamos pensar em começar de novo." p. 154
Foi brilhante a sua construção a respeito da ideia da "mulher negra raivosa", muitas vezes utilizado para descredibilizar o discurso das feministas negras, colocado por aí como radical demais. É meu caro... se as mulheres brancas passassem pelo que a gente passa, provavelmente não achariam nossas abordagens tão radicais assim. 

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Os capítulos finais serviram ainda para tratar da relação entre raça e classe de maneira sucinta e se dirigir aos leitores brancos que podem ter chegado ao fim do livro sem saber muito bem como proceder com as informações que a autora apresentou. Ela faz um pedido para que estes não se sintam simplesmente culpados, mas com raiva. "Apoie aqueles na luta ao invés de gastar muito tempo com pena de si mesmo" (p. 183). E apesar de apresentar em todas as suas páginas uma realidade pesada, senti que a obra conseguiu ser encorajadora, nos fazendo pensar em novas pautas que precisam ser discutidas e colocadas sob a luz do holofote.
No mais, eu digo: leia este livro. Seja qual for a sua etnia, a sua posição social, a sua opinião sobre o tema. Leia. Tire suas próprias conclusões. E por favor, não descredibilizem o lugar de fala da autora: pois não pude deixar de observar que a grande maioria que avaliou o livro negativamente no Goodreads é branca. 


ISBN: 978-85-9530-299-0
Editora: Letramento
Nota: 5/5 ⭐

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