Dias de Abandono (Elena Ferrante)

"Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar". É assim que começa Dias de Abandono, romance da autora italiana Elena Ferrante. A história segue sendo narrada por Olga, a esposa abandonada, que precisa lidar com o casamento destruído, dois filhos e um cachorro. Em suas 183 páginas, traduzidas por Francesca Cricelli e publicadas pelo selo Biblioteca Azul da Editora Globo, acompanhamos os pensamentos e sentimentos dessa mulher devastada e em crise.

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SINOPSE

Moradores de um apartamento em Turim, para onde Olga se mudou por conta da carreira profissional do marido, com dois filhos e um cachorro, Mario e Olga viveram uma relação de 15 anos com os altos e baixos de um casamento normal. Sem abalos que evidenciassem um término repentino, Olga ouve o discurso de seu marido anunciando que ele a deixaria naquele momento. As páginas seguintes vão desnudando cenas críticas do passado do casal, repassadas até a exaustão pela protagonista e misturadas à urgência do seu cotidiano completamente destruído.
Em Dias de abandono, Ferrante escancara a dor da rejeição moldada pelos sentimentos e particularidades de uma mulher. Em um corajoso e às vezes violento mergulho existencial, Olga vai aos poucos substituindo um atormentado desejo de redenção por algo ainda desconhecido. 
Antes presa a um personagem construído pela sociedade e por suas próprias expectativas, ela se dá conta de que amou mais justamente quando se sentiu “enganada, humilhada e abandonada”. A raiva pela justificativa mentirosa do marido ao tê-la deixado, que antes parecia acender a urgência do amor, agora o esvazia. No espaço entre esses dois pólos distintos, sem amor, dentro do nada, resta a ela saber se novos sentidos podem tomar formas na urgência da vida.
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Apesar de a fala de Mario, o marido, ser curta e grossa e de ele realmente cumprir o que prometeu e deixar a família, é claro que rola conflito. Inicialmente Olga chega a duvidar que essa decisão vai durar: ela lembra que isso já aconteceu antes, que eles já passaram por crises. Mas o tempo vai passando e ela começa a confrontar o marido, brigando e insinuando que o motivo da separação seja outra mulher - fato que acaba sendo confirmado posteriormente.

Você não pode me deixar aqui tendo esperança, quando na verdade você já decidiu tudo". p. 14
Com essa revelação, Olga começa a ter pensamentos muito obscuros. Não consegue parar de imaginar Mario com sua nova mulher, xingando eles internamente o tempo todo. Isso faz com que ela muitas vezes se desligue da realidade, e passe a tratar diferente todos a sua volta - inclusive os seus filhos. Ela tenta se controlar, fala que não quer se tornar uma pessoa desprezível, e chega a lembrar do caso de uma vizinha que, na sua infância, foi deixada pelo marido e passou a ser conhecida como "a pobre coitada" por todos os seus conhecidos. 
Porém, ao mesmo tempo, a sua curiosidade sobre a nova vida do ex-marido só aumenta; ela tenta se informar através de amigos em comum, descobrir quem é a sua nova mulher e saber todos os detalhes possíveis sobre eles.

Era só abrir a boca que já sentia vontade de manchar, sujar Mario e a sua puta. Eu detestava a ideia de que ele soubesse tudo de mim enquanto eu sabia pouco ou nada dele. Sentia-me como quem é cego e sabe ser observado por aqueles que querem espiar cada detalhe". p. 23

Em meio a tudo isso, uma pessoa passa a fazer parte da vida de Olga: Carrano, o seu vizinho, que costumava desprezar o seu marido, e acaba sendo alguém acolhedor em meio ao conflito que ela está enfrentando. Eles acabam se aproximando por acaso, quando Olga encontra na rua a sua carteira de motorista perdida; e com o tempo essa relação se torna mais próxima.


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O restante da obra demonstra gradualmente as mudanças pelas quais Olga passa. De uma esposa calma e mãe exemplar a mulher transtornada e impulsiva, ela se sente diminuída pelo que aconteceu e simplesmente não sabe lidar com tudo isso. Os seus filhos, Gianni e Ilaria, apesar de crianças, notam as mudanças da mãe. Suas reações nem sempre são as melhores, afinal eles também estão sofrendo com a separação dos pais e não sabem quem culpar. Até mesmo o cachorro, Otto - que é parte importante da história - acaba sendo negligenciado. São dias difíceis para esta família.
Havia algo que não funcionava em meus sentidos. Uma intermitência do sentir, dos sentimentos. Às vezes me abandonava a eles, às vezes me assustavam. [...] Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do por quê. Isso era o que eu me tornara no tempo de uma noite." p. 103
Todo esse caos desencadeia um dos dias de maior aflição registrados no livro. Tudo que acontece ali acaba sendo a chave para o desenrolar das coisas, pois reverbera no crescimento dos personagens e na "solução" dos problemas. Foi preciso que o caos atingisse o seu ápice numa manhã quente de sábado, quando Olga se perde totalmente e se entrega a um estado de sofrimento, para então as coisas tomarem um rumo diferente.

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Este é um romance intenso, e a escrita da autora evoca isso. Não é a toa que Elena Ferrante se tornou tão reverenciada por suas obras. Sua tetralogia, Napolitana, rendeu ótimas críticas e o primeiro livro dos quatro, A amiga genial, chegou a ser adaptado para uma série da HBO. Dias de abandono é um livro sobre perda, amor e amadurecimento, e que deixa o leitor apreensivo com suas cenas fortes e até mesmo obscenas, registradas de maneira nua e crua pela autora. 
Admito que a linguagem do livro e as atitudes da protagonista muitas vezes não me agradaram - mas acredito que essa seja uma questão de gosto mesmo -, e o final para mim também deixou a desejar. Entretanto, gostei muito de ver o crescimento que a protagonista Olga teve, de ver como ela passou a refletir sobre os 15 anos de seu casamento, refletir sobre quem o marido era - e se realmente o conhecia - e até mesmo quem ela mesmo é. Acho ainda que todo mundo, em certa medida, pode se identificar com o drama de Olga: é possível se enxergar em sua loucura, principalmente se você já passou por alguma situação de abandono ou perda.
O livro com certeza me tirou da minha zona de conforto, e apesar de não ter considerado uma de minhas melhores leituras, me deixou curiosa para ler mais da autora. Futuramente irei me debruçar sobre outras obras de Elena Ferrante.


ISBN: 978-85-250-6183-6
Tradução: Francesca Cricelli
Nota: 3/5 ⭐


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